quarta-feira, 1 de julho de 2015

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: DESAFIOS PARA O PROFESSOR

Maria Cristina Fernandes Robaszkievicz
(FAFIUV – UNIGUAÇU – CELER)

1      A AQUISIÇÃO DA ESCRITA E AS HIPÓTESES DE FERREIRO E TEBEROSKY

A partir dos anos 80, após a divulgação dos trabalhos de Emília Ferreiro e Teberosky (1985) sobre a psicogênese da língua escrita, abriram-se novas visões e conceitos na compreensão do princípio alfabético da nossa escrita, em perspectivas que abarcam os primeiros anos de escolarização da criança.
Os trabalhos de Emília Ferreiro (1985) sobre a conceitualização da escrita pelas crianças centram-se, sobretudo, na compreensão do princípio alfabético da nossa escrita, salientando a dimensão fonográfica do sistema. Conforme assinalam Ferreiro e Teberosky (1985), a criança chega a desvendar como funciona a leitura e a escrita através de caminhos que percorre antes mesmo de ingressar no ambiente institucionalizado, pois o percurso para compreender as características, o valor e a função da escrita constitui objeto de sua atenção desde muito cedo. É necessário esclarecer que essas autoras não tratam de uma nova metodologia da aprendizagem, o que elas descrevem é a interpretação do processo de chegada à escrita alfabética, demonstrando as fases da construção da aquisição da língua escrita, sob o ponto de vista de um processo construtivista.
Emília Ferreiro iniciou suas investigações empíricas na Argentina, ao lado de Ana Teberosky. Nas pesquisas que coordenaram existe uma clara integração de objetivos científicos a um compromisso com a realidade social e educacional da América Latina. Analisando essa realidade educacional, as autoras demonstraram que o fracasso nas séries iniciais da vida escolar atinge de modo perverso apenas os setores marginalizados da população, porque os alunos provenientes das classes menos favorecidas têm pouco contato com materiais escritos, antes de sua chegada à escola.
Também do ponto de vista teórico, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky trazem uma contribuição original, pois tomam como objeto de estudo um conteúdo ao qual Piaget não se dedicava: o resgatando os pressupostos epistemológicos centrais da teoria, aplicados à análise do aprendizado da língua escrita. Em nota preliminar à primeira edição da Psicogênese da Língua Escrita, as autoras escrevem (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 11):
[...] Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõem problemas e trata de solucioná-los seguindo sua própria metodologia... Insistiremos sobre o que se segue: trata-se de um sujeito que procura adquirir conhecimento, e não simplesmente de um sujeito disposto ou mal disposto a adquirir uma técnica particular.Um sujeito que a psicologia da lecto-escrita esqueceu [...].

A corrente construtivista defendida pelas autoras entende que o processo de aprendizagem da leitura e da escrita não pode ser desencadeado a partir de métodos específicos de alfabetização, mas deve ser gerado por uma atividade organizadora do sujeito, visto como ativo. Essa atividade é estabelecida na interação sujeito/objeto do conhecimento. A aprendizagem da leitura e da escrita então, não pode ser reduzida à aquisição de um conjunto de técnicas percepto-motoras, como propõe o modelo associacionista, que, “tem como fundamento a ênfase no objeto, e considera o sujeito como uma tábula rasa, uma “cera mole” que precisa ser moldada.”. Vista como processo, essa aprendizagem corresponde a uma aquisição conceitual. Ferreiro e Teberosky (1985) constataram, através de pesquisas, que a criança, em sua caminhada de compreensão do sistema de escrita, constrói várias hipóteses que vão do pré-silábico ao alfabético.
Nessa construção de hipóteses, a criança atravessa várias etapas: primeiro delimita a escrita, no universo gráfico geral, por oposição ao desenho. Depois entende que, para que alguma coisa seja escrita, deve ter as seguintes propriedades:
- linearidade - as unidades devem estar dispostas em linhas;
- descontinuidade - deve haver algum tipo de fragmentação entre as unidades ou grupos de unidades;
- quantidade mínima - deve haver um número mínimo de unidades;
- variação interna - deve existir uma certa variedade entre as unidades;
- combinação - deve haver uma seleção nos agrupamentos, nem todas as letras podem combinar-se com as outras.
Relacionando esses diversos elementos, as autoras chegam aos níveis da construção da linguagem escrita, aqui exemplificados a partir de Azenha (1995), em seu livro “Construtivismo de Piaget a Emilia Ferreiro”.
Nível 1 - Escrita Indiferenciada: uma das principais características da escrita pertencente a este nível é a baixa diferenciação existente entre a grafia de uma palavra e outra. Os traços são bastante semelhantes entre si e, dependendo do tipo de escrita com a qual a criança teve maior interação, os grafismos podem ser constituídos de traços descontínuos (cujo modelo é o traçado da letra de imprensa), ou com maior continuidade (inspirados no traçado da letra cursiva).
Dada a semelhança que as escritas têm quando comparadas entre si, o que as diferencia é apenas a intenção do produtor. Interpretações, portanto, só podem ser feitas pelo próprio autor. Ainda assim, a leitura que a criança faz após a escrita de cada palavra é muito instável e, algum tempo depois, se o próprio produtor voltar a fazer novas interpretações, poderão ser atribuídos aos grafismos novos significados.
De uma forma não sistemática, uma estratégia utilizada pelas crianças para proceder a alguma diferenciação entre os grafismos é reproduzir o tamanho do objetivo referido, fazendo corresponder a ele um traço maior ou menor, na dependência do referente da palavra a ser escrita.
Algumas crianças usam uma estratégia que parece demonstrar a dificuldade de interpretar a própria produção escrita, que objetivamente não distingue um conteúdo de outro. A necessidade de encontrar apoio que garanta o significado no momento da leitura as faz parear desenhos e escrita. O desenho é uma clara estratégia de remissão ao conteúdo registrado.
Os dados constantes da Psicogênese da Língua Escrita também exemplificam essa conduta, indicando a existência de alguma indecisão momentânea das crianças para definir ou classificar os grafismos produzidos (desenho ou escrita). Ferreiro interpreta essa indecisão como decorrente das dificuldades de compreender a função da escrita, fato que leva algumas crianças a responder à proposta de escrita com um desenho, classificado por elas como escrita. Parecem estar indecisas quanto ao que a escrita representa: registro do significado ou registro de palavras?
Neste nível, a característica mais importante é a maneira como as crianças procedem à interpretação: a leitura é global. Elas não fazem análise entre as partes componentes e o todo, inexistindo, portanto, tentativas de fragmentação do texto escrito durante o ato de leitura.


Nível 2 - Diferenciação da Escrita[1]: a característica principal das escritas categorizadas como pertencentes a este nível é a tentativa sistemática de criar diferenciações entre os grafismos produzidos. A necessidade de diferenciar a intenção do produtor é objetivada pela criação de totalidades gráficas distintas.
A hipótese da quantidade mínima de caracteres (que deve haver um número mínimo de caracteres) para compor uma escrita e a necessidade de variá-los continuam como exigências presentes. Acrescidas da intenção de objetivar as diferenças do significado das palavras. Quando a disponibilidade de letras conhecidas é pequena, a confluência dessas exigências acaba por criar a necessidade de gerar totalidades novas pela alteração da ordem linear das letras. Em outras palavras, utilizando-se de um mesmo repertório, a ordem das letras deve variar de uma escrita para outra, de forma a garantir a criação de um conjunto que se diferencie do outro.

Nível 3 - Hipótese Silábica: este nível de aquisição é caracterizado pela emergência de um elemento crucial, ausente nos níveis anteriores: a criança inicia a tentativa de estabelecer relações entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do registro. A consideração dos aspectos sonoros da linguagem representa um divisor de águas no processo evolutivo. A estratégia utilizada pela criança é atribuir a cada letra ou marca escrita o registro de uma sílaba falada, e isso constitui a hipótese silábica. O saldo qualitativo representado por essa estratégia leva a criança à superação global entre a forma escrita e a expressão oral, fazendo com que, pela primeira vez, trabalhe com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala.
O emprego de letras sem a consideração de seu valor sonoro convencional ou a qualidade da grafia não é condição para identificação do emprego da hipótese silábica. O fato crucial que evidencia a sua utilização pela criança é atribuição de um valor silábico a cada marca produzida como parte de uma totalidade registrada, seja ela letra, pseudoletra, número, letra com valor sonoro convencional ou não. A fragmentação do texto escrito para fazer
corresponder um segmento oral a um segmento escrito é o indicador da concepção silábica de escrita.
Nível 4 - Hipótese Silábico-Alfabética: este nível é caracterizado pela utilização simultânea das hipóteses silábica e alfabética, ou mesmo o momento de passagem de uma hipótese para outra. As alterações vão sendo feitas pontualmente, em alguns segmentos da escrita, mas não em outros, dentro da mesma palavra. É um momento de transição, em que a criança, sem abandonar a hipótese anterior, ensaia em alguns segmentos a análise da escrita em termos dos fonemas (escrita alfabética).

Nível 5 - Hipótese Alfabética: Este nível, vencidos todos os obstáculos conceituais para a compreensão da escrita, mostra a correspondência entre cada um dos caracteres da escrita e os valores sonoros menores que a sílaba. A criança, nesse nível, realiza sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever. Atingida esta fase de aquisição da escrita, pode-se até afirmar que uma criança está alfabetizada, embora não signifique a superação de todos os problemas.
Há o alcance da legibilidade da escrita produzida, já que esta pode ser mais facilmente compreendida pelos adultos, no entanto, um amplo conteúdo ainda está para ser dominado: as regras normativas de ortografia.


Na verdade, as hipóteses de Ferreiro e Teberosky sobre a compreensão do funcionamento da aquisição do sistema de escrita pela criança abordam a alfabetização. No entanto, as autoras (1985, p. 156) prevêem como objetivo da alfabetização a introdução da língua em toda a sua complexidade e não unicamente como introdução do código com correspondências grafofônicas.
Para essas autoras, o que caracteriza a complexidade da escrita é o seu desenvolvimento, iniciado antes mesmo de a criança aprender a ler e a escrever de forma convencional, e a continuidade do processo, que se estende mesmo após ter compreendido a representação da escrita. Crianças ainda não alfabetizadas buscam regularidades e padrões no sistema de escrita de forma que aquilo que escrevem possa ser aceito como uma palavra e possa ser lido por outra pessoa (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985). Dentro dessas regularidades, as crianças iniciam um processo de reflexão metalingüística sobre a representação das marcas gráficas e dos sons emitidos.
Ferreiro e Teberosky (1985, p. 181), nos estudos que fizeram sobre a natureza do sistema de representação da escrita, no caso de um sistema alfabético, como o português, mostram a extrema importância de a criança desenvolver uma hipótese alfabética para ser capaz de analisar as palavras em termos de fonemas, que são representados pelas letras na palavra escrita. Importante enfatizar que essas descobertas todas não significam o final do processo, pois a criança terá que aperfeiçoar o aprendizado com objetivo de produzir uma escrita ortográfica apropriada ao português.



A interação da criança com um adulto, ou com pessoas mais proficientes de seu grupo, está expressa na concepção de aprendizagem como um processo de construção de conhecimento, na teoria de Vygotsky e seus seguidores. Dentro dessa concepção, o professor da classe de alfabetização vê seu aluno como um sujeito que constrói ativamente saberes e habilidades. Isto difere profundamente de quadros transmissivos nos quais os alunos são considerados “receptores”; tábulas rasas, que aprendem por repetições ou por substituições. Para Vygotsky os sujeitos constroem seus conhecimentos em contextos historicamente determinados sobre a base de suas representações e de seus saberes anteriores.
A aprendizagem, segundo o autor (2001), pressupõe o envolvimento de pequenos grupos ou pares de indivíduos em uma interação social, em uma prática comunicativa. A relação Sujeito – Outro – Objeto faz com que o sujeito construa os saberes no quadro das interações sociais. Essa aprendizagem, por sua vez, será resultante de internalização, ou seja, certos aspectos da atividade realizadas no plano externo passam a se realizar no plano interno.
A construção do conhecimento é, pois, apresentada como um jogo constante de conflitos, de desestruturações/reestruturações. Para essa construção, o conceito de “Zona de Desenvolvimento Proximal” (ZDP) é fundamental (VYGOTSKY, 2001, p. 97):
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma designar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiro mais capaz.

Vygotsky considera dois níveis de desenvolvimento. O primeiro, referente a conquistas já efetivadas, representa o nível de desenvolvimento real ou efetivo, com conquistas que já estão consolidadas, funções ou capacidades que já foram aprendidas e dominadas de forma a serem utilizadas sozinhas. O outro, relativo ao desenvolvimento potencial, diz respeito às capacidades em vias de serem construídas, também envolvendo aquilo que a criança é capaz de fazer mediante a ajuda de outra pessoa. O aprendizado é responsável por criar a zona de desenvolvimento proximal, na medida em que, em interação com outras pessoas, a criança é capaz de colocar em movimento vários processos de desenvolvimento que, sem a ajuda externa, seriam impossíveis. Desse modo, o que determina a ZDP é o nível de desenvolvimento da criança e a forma de ensino aprendizagem envolvida. A ZDP, da forma como é formulada, prevê apenas situações de sucesso na aprendizagem.
Vygotsky atribui enorme importância ao papel da interação no desenvolvimento do ser humano, pois, segundo ele, é um processo socialmente constituído. Essa é a principal razão de seu interesse no estudo da infância, “A mente da criança contém todos os estágios do futuro desenvolvimento intelectual: eles existem já na sua forma completa, esperando o momento adequado para emergir” (VYGOTSKY, 2001, p. 26). Para ele, no entanto, a maturação biológica é um fator secundário do desenvolvimento das formas complexas do indivíduo, pois essas dependem da interação da criança e sua cultura. O aprendizado de modo geral e o aprendizado escolar orientam e estimulam processos de crescimento. O desenvolvimento e a aprendizagem estão inter-relacionados desde o nascimento da criança. Através da interação com o meio físico e social, essa criança realiza uma série de aprendizados, que lhe permitem atingir as funções superiores.
Para compreender suas concepções sobre o desenvolvimento humano como processo sócio-histórico é central a idéia de mediação: como sujeito do conhecimento, o homem não tem acesso direto aos objetos, só acesso mediado, através de recortes do real, operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe. Vygotsky, assim, enfatiza a construção do conhecimento como uma interação mediada por várias relações. A corrente sócio-histórica, presente nas obras de Vygotsky, centraliza esse processo na atividade interativa, envolvendo uma mediação necessária feita pelo outro - adulto e parceiros de aprendizagem. Essa aprendizagem efetivamente socializada se dá através de um mecanismo pelo qual uma atividade externa se torna uma atividade interna (internalização), como já explicado.
A partir dessa perspectiva, o professor, o colega mais experiente na escola assume papel fundamental no intercâmbio, regulando o funcionamento discursivo e interferindo na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo. Na sala de aula, convivem crianças da mesma idade com seu professor. Nem sempre esse fato social é aproveitado pelo ensino, embora seja fácil perceber a riqueza potencial do intercâmbio entre pares para a aprendizagem.  
Outro ponto de vista importante da teoria vigotskiana é a ênfase à escrita, justificada pela importância da linguagem escrita para o pensamento. Do ponto de vista cognitivo, a aprendizagem da língua escrita, ao mesmo tempo em que se está associada à aprendizagem de um novo objeto de conhecimento, também se apresenta como uma nova ferramenta para futuras aprendizagens. A língua escrita é para o aprendiz um meio pelo qual ele irá raciocinar e representar o mundo ao seu redor. As propriedades desse sistema simbólico vão influenciar os processos cognitivos da criança, de modo a amplificar os seus limites naturais e seus modos de operação.
O processo de alfabetização/letramento, em se tratando de crianças, tem seu ponto de partida na aquisição da leitura e da escrita.



A alfabetização hoje é vista como o fator principal do fracasso escolar, cujo índice, principalmente entre as crianças das camadas populares, evidencia uma fraca eficácia do sistema escolar. Pesquisas recentes revelam que crianças do ensino fundamental têm dificuldades para ler e para utilizar a escrita na produção de textos em seus usos sociais.
O SAEB (Sistema de Avaliação de Educação Básica) demonstra, em sua pesquisa de 2004, que 59% dos alunos da 4ª série do Ensino Fundamental apresentaram resultados insatisfatórios no desenvolvimento da leitura e da escrita, mostrando que um número expressivo de alunos não aprende a ler nem a escrever na escola. O afastamento que crianças das classes populares têm da linguagem escrita em livros, jornais, enfim, material escrito, faz com que essas crianças precisem de um tempo maior ou de outro tipo de investimento para que entendam como funciona e para que serve a linguagem escrita.
Considerando-se que o atual contexto social e profissional requer um cidadão com conhecimento sobre a língua escrita além das “primeiras letras”, os processos de alfabetização precisam ser devidamente entendidos e trabalhados. Antes de tudo, o professor precisa refletir sobre o que significa alfabetizar em uma sociedade letrada, uma vez que, de acordo com Val (2004), é possível a uma pessoa passar pela escola, aprender a codificar e decodificar a escrita, ler palavras e textos simples, mas ser incapaz de empregar a linguagem escrita em situações sociais que requerem habilidades mais complexas de leitura e produção textual. Essa pessoa pode ser considerada alfabetizada, mas não letrada, visto que o letramento supõe a participação de sujeitos em ações sociais contextualizadas que acontecem nas diversas situações de uso real da leitura e da escrita.
Alfabetização e letramento são dois processos diferentes, mas indissociáveis (SOARES, 2002). Essa diferença fica mais clara quando se entende a alfabetização como o processo de aprendizagem do código da escrita, e o letramento como o desenvolvimento das práticas sociais de leitura e escrita. São processos cognitivos diversos que exigem procedimentos metodológicos diferentes. Entretanto é preciso que o aluno, no processo de alfabetização, domine o letramento, e adquira o código praticando. Nessa perspectiva, alfabetização é letramento.
Segundo Soares (2001) o emprego dos verbos integrar e articular retoma a afirmação anterior de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações de letramento, isto é, no contexto de/e por meio de interação com material escrito real, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de escrita. Essa interação não pode ser construída de forma artificial, de ao contrário, ser naturalmente proposta pela escola, e expandida para os limites do contexto social em que vive a criança.           
Uma maneira de enfrentar os desafios da alfabetização é respeitar o conhecimento prévio que o aluno traz para a escola. Quando os conhecimentos prévios não são considerados, as crianças passam a enfrentar maiores dificuldades na aprendizagem. Crianças que vêm do meio letrado trazem muitos conhecimentos sobre leitura e escrita. Nesse caso, a junção do que a criança já sabe com a aprendizagem da escola se completam, proporcionando uma rápida aprendizagem do ler e escrever.
Por outro lado, a criança que vem das camadas populares traz consigo um outro conceito sobre a atividade de leitura, uma vez que tem a sua disposição uma quantidade menor de material escrito, não vê e não participa de atos de leitura, muitas vezes os pais são analfabetos, e em suas casas não há revistas, livros, jornais ou outro material para leitura. Cabe à escola mostrar a essa criança o valor social da escrita, pois não se pode esquecer que, mesmo vindo de uma camada desfavorecida, a criança vive imersa na cultura letrada, pois só o fato de sair à rua é suficiente para mostrar a presença constante da escrita por todos os lados.
Pesquisa realizada por Franz (2004), em uma escola da periferia de Porto Alegre (RS), investiga alunos que não conseguiam aprender a ler e a escrever em turmas regulares e que, em razão disso, integravam uma Turma de Progressão (TP). Diferentemente de outros planejamentos relacionados à alfabetização, nos quais normalmente se trabalha com a história da escrita, com o traçado das letras, com o reconhecimento do som, do nome e da forma das letras, com a categorização gráfica das letras e com as letras dos nomes dos alunos, este projeto pedagógico exigia que os alunos sentissem vontade de aprender as letras ou que, pelo menos, sentissem que eram capazes de aprender. Até aquele momento considerava-se que, como a maioria dessas crianças já havia freqüentado a escola, o desejo real de escrever e ler estava consolidado. As atividades desenvolvidas nas duas primeiras semanas de aula mostraram justamente o contrário: os alunos não acreditavam na capacidade que tinham para aprender, já que haviam fracassado em outras vivências escolares. A escrita e a leitura eram ignoradas, e, quando eram solicitados a realizar trabalhos que envolvessem o alfabeto, os alunos escondiam-se atrás de desentendimentos e brigas com os colegas, havendo necessidade de conter fisicamente alguns, com aparente comprometimento psicológico e/ou neurológico. Além disso, os alunos conviviam com poucos materiais escritos, a escrita e a leitura não tinham um lugar na sua vida, pois representavam um fracasso para eles. Houve, então, necessidade de um trabalho de alfabetização para significar e/ou ressignificar a escrita e a leitura na vida desse grupo de crianças, ou ainda para conhecer mais de perto o que as impedia de ir adiante. O primeiro trabalho proposto, com base no interesse das crianças, foi a escrita dos nomes das partes do corpo humano. Dessa forma a TP começou a abrir espaço para o estudo das letras, dando início ao seu processo de alfabetização. Simultaneamente ao trabalho desenvolvido sobre o conhecimento do corpo, os alunos foram convidados a fazer um passeio dentro da comunidade para visitar a casa de cada um, com a finalidade de fotografar tudo o que estivesse escrito no trajeto percorrido. O trabalho em sala de aula, com os escritos retirados da própria comunidade, através de fotografias solicitadas pelos próprios alunos provocou interesse em relação à escrita. Todo o trabalho centralizou-se no princípio de que motivação da escrita é sua própria razão de ser; a decifração constitui apenas um aspecto mecânico de seu funcionamento.
Alfabetizar letrando no processo de aprendizagem inicial da língua escrita,é, sem dúvida o caminho da superação dos problemas, conforme constatando em levantamentos do tipo do realizado pelo SAEB e citado anteriormente.
É importante estabelecer a distinção entre alfabetização e letramento que norteia o presente estudo: alfabetização – compreendida como aquisição do sistema convencional da escrita – distingue-se de letramento – entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais. Essa distinção ocorre tanto em relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e lingüísticos de aprendizagem e também de ensino desses diferentes objetos. Tal fato explica por que é conveniente a distinção entre os dois processos. Também é necessário reconhecer que a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou seja, em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento. O letramento, por sua vez, pensado dentro do contexto de escolarização, só pode desenvolver-se na dependência da/e por meio da aprendizagem do sistema de escrita. Como bem afirma Soares (2002, p. 3),

Para a alfabetização e letramento ocorrerem em sala de aula é necessária uma proposta de um ensino de língua que tenha o objetivo de levar o aluno a adquirir um “grau de letramento” cada vez mais elevado e desenvolver nele um conjunto de habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam fazer o maior e mais eficiente uso possível das capacidades técnicas do ler e escrever.
Nesse ponto, é preciso ressaltar que o conceito de letramento, de uma forma ampla, permite ainda abrigar práticas letradas de indivíduos não alfabetizados. Um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser letrado, porque se envolve em práticas sociais de leitura e de escrita. Como vivemos numa sociedade em que as letras, as palavras estão por toda parte, as pessoas que convivem com elas obrigam-se a descobrir formas de usá-las, já que precisam tomar o ônibus, ir a dados lugares, comprar determinados produtos, manusear dinheiro etc., o que significa que, embora não estejam alfabetizadas em nível escolarizado, essas pessoas, do “seu jeito”, utilizam à leitura como prática social. Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e percebe seu uso e função. Embora ainda “analfabeta”, já penetrou no mundo do letramento, já é letrada.
O conceito do que é ser alfabetizado também vem evoluindo, e já incorpora as noções de letramento. Durante muito tempo, considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrever o próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à pergunta se sabe ler e escrever um bilhete simples que define se o individuo é analfabeto ou alfabetizado. Ou seja, da verificação apenas da habilidade da codificação do próprio nome, passou-se à verificação da capacidade de usar a leitura e a escrita para uma prática social. Embora essa prática seja bastante limitada, já se evidencia a busca de um “estado ou condição de quem sabe ler ou escrever mais que a verificação da simples presença da habilidade de codificar em língua escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avaliação do nível de letramento, e não apenas a avaliação da presença ou ausência da tecnologia do ler e escrever” (SOARES, 2001, p. 37). Do ponto de vista individual, o aprender a ler e a escrever engloba alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita. Essa nova prática tem conseqüências pois altera o estado ou a condição do indivíduo em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, lingüísticos e até mesmo econômicos.
A alfabetização implica a aquisição de uma tecnologia: codificar em língua escrita (escrever) e decodificar a língua escrita (ler). Não basta, porém ao aluno adquirir essa tecnologia: ele precisa usá-la em práticas sociais de leitura e escrita, em práticas de letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto de/e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da/e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema. Portanto, não se trata de a escola escolher entre dois processos: a alfabetização ou o letramento. Não há opção entre isto ou aquilo. No contexto escolar, os dois processos, como ressaltam Soares (2001, 2002), Matêncio (1994), Terzi (2002), Kleiman (1998), não podem estar separados, têm que acontecer ao mesmo tempo. Logo, só existe uma escolha: alfabetização e letramento.
Dessa forma, a escola precisa ir além daquela visão conservadora de que a alfabetização está restrita às habilidades de leitura e escrita; precisa ter como meta conciliar as duas aprendizagens da língua escrita: a do letramento, por meio do convívio da criança com a cultura escrita, da sua interação com diferentes tipos e gêneros textuais, da sua participação em atos reais de leitura e escrita; e a da alfabetização, por meio da identificação das relações fonema-grafema, do conhecimento do sistema de escrita, do desenvolvimento de habilidades de codificação e decodificação. Nesse sentido, a aquisição da escrita acaba constituindo um processo de alfabetização “sem limites ou datas marcadas”, como afirma Guimarães (2006, p. 60).
Nesse cenário de aproximação entre alfabetização e letramento, é importante relembrar alguns pontos fundamentais da teoria vygotskiana que podem ajudar a concretizar essa relação na escola.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões em torno da alfabetização e letramento não são discussões passageiras, porque são importantes temáticas a serem debatidas e articuladas no trabalho que docentes realizam em sala de aula.
É de suma importância para o professor alfabetizador ter conhecimento das fases da aquisição da escrita para durante o processo de alfabetização compreender as construções feitas pelos alfabetizandos.Ter um olhar  sobre a aquisição da  escrita de  “construção”, não apenas como erros e falta de compreensão.
Também dentro da teoria Vygotskiana encontramos a importância do “outro” dentro da compreensão e aquisição da escrita, motivo pelo qual se faz presente dentro deste artigo.
Após conhecermos estes importantes conceitos teóricos, vemos também a grande importância de alfabetizar e letrar no mesmo instante. Alfabetização e letramento são processos independentes, um não depende do outro, mas, alfabetizar e letrar é o grande desafio hoje para o professor alfabetizador. O modo como o professor conduz o seu trabalho é crucial para que a criança construa o conhecimento sobre o objeto escrito e adquira certas habilidades que lhe permitirão o uso efetivo do ler e do escrever em diferentes situações sociais.
Há uma necessidade muito grande que haja um diálogo constante entre professores, pesquisadores e formadores de professores, na busca de alternativas pedagógicas para a escola formar realmente leitores e produtores de textos competentes.codificar e decodificar o código escrito é apenas alfabetizar, formar sujeitos que exerçam a escrita nas diversas situações sociais que lhe são impostas pela sociedade requer do professor que assuma certas posturas diferenciadas,como a de realizar o trabalho de aquisição da tecnologia da escrita, somando à interação com diferentes textos escritos criando situações de aprendizagem que se aproximem do uso real da escrita fora da escola.que a vida dentro da sala de aula seja uma continuidade daquilo que é vivido fora dela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MATENCIO, Maria de Lourdes Meirreles. Leitura, produção de textos e a escola: reflexões sobre o processo de letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1994.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/07/greve-dos-professores-em-ms-continua-apos-38-dias-de-paralisacao.html
www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2015/06/30/interna_vidaurbana,583886/congresso-brasileiro-de-alfabetizacao-em-julho-no-recife.shtml