ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO: DESAFIOS PARA O PROFESSOR
Maria Cristina
Fernandes Robaszkievicz
(FAFIUV – UNIGUAÇU –
CELER)
1 A AQUISIÇÃO DA ESCRITA E AS HIPÓTESES DE FERREIRO E
TEBEROSKY
A partir dos anos 80,
após a divulgação dos trabalhos de Emília Ferreiro e Teberosky (1985) sobre a
psicogênese da língua escrita, abriram-se novas visões e conceitos na
compreensão do princípio alfabético da nossa escrita, em perspectivas que
abarcam os primeiros anos de escolarização da criança.
Os trabalhos de
Emília Ferreiro (1985) sobre a conceitualização da escrita pelas crianças
centram-se, sobretudo, na compreensão do princípio alfabético da nossa escrita,
salientando a dimensão fonográfica do sistema. Conforme assinalam Ferreiro e
Teberosky (1985), a criança chega a desvendar como funciona a leitura e a
escrita através de caminhos que percorre antes mesmo de ingressar no ambiente
institucionalizado, pois o percurso para compreender as características, o
valor e a função da escrita constitui objeto de sua atenção desde muito cedo. É
necessário esclarecer que essas autoras não tratam de uma nova metodologia da
aprendizagem, o que elas descrevem é a interpretação do processo de chegada à
escrita alfabética, demonstrando as fases da construção da aquisição da língua
escrita, sob o ponto de vista de um processo construtivista.
Emília Ferreiro
iniciou suas investigações empíricas na Argentina, ao lado de Ana Teberosky.
Nas pesquisas que coordenaram existe uma clara integração de objetivos
científicos a um compromisso com a realidade social e educacional da América
Latina. Analisando essa realidade educacional, as autoras demonstraram que o
fracasso nas séries iniciais da vida escolar atinge de modo perverso apenas os
setores marginalizados da população, porque os alunos provenientes das classes
menos favorecidas têm pouco contato com materiais escritos, antes de sua
chegada à escola.
Também do ponto de
vista teórico, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky trazem uma contribuição
original, pois tomam como objeto de estudo um conteúdo ao qual Piaget não se
dedicava: o resgatando os pressupostos epistemológicos centrais da teoria,
aplicados à análise do aprendizado da língua escrita. Em nota preliminar à
primeira edição da Psicogênese da Língua Escrita, as autoras escrevem (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1986, p. 11):
[...]
Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como
questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que
é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por
insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos manuais, dos recursos
didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se
propõem problemas e trata de solucioná-los seguindo sua própria metodologia...
Insistiremos sobre o que se segue: trata-se de um sujeito que procura adquirir
conhecimento, e não simplesmente de um sujeito disposto ou mal disposto a
adquirir uma técnica particular.Um sujeito que a psicologia da lecto-escrita esqueceu [...].
A corrente
construtivista defendida pelas autoras entende que o processo de aprendizagem
da leitura e da escrita não pode ser desencadeado a partir de métodos
específicos de alfabetização, mas deve ser gerado por uma atividade
organizadora do sujeito, visto como ativo. Essa atividade é estabelecida na
interação sujeito/objeto do conhecimento. A aprendizagem da leitura e da
escrita então, não pode ser reduzida à aquisição de um conjunto de técnicas
percepto-motoras, como propõe o modelo associacionista, que, “tem como
fundamento a ênfase no objeto, e considera o sujeito como uma tábula rasa, uma “cera mole” que precisa
ser moldada.”. Vista como processo, essa aprendizagem corresponde a uma
aquisição conceitual. Ferreiro e Teberosky (1985) constataram, através de
pesquisas, que a criança, em sua caminhada de compreensão do sistema de
escrita, constrói várias hipóteses que vão do pré-silábico ao alfabético.
Nessa construção de
hipóteses, a criança atravessa várias etapas: primeiro delimita a escrita, no
universo gráfico geral, por oposição ao desenho. Depois entende que, para que
alguma coisa seja escrita, deve ter as seguintes propriedades:
-
linearidade - as unidades devem estar dispostas em linhas;
-
descontinuidade - deve haver algum tipo de fragmentação entre as unidades ou
grupos de unidades;
-
quantidade mínima - deve haver um número mínimo de unidades;
-
variação interna - deve existir uma certa variedade entre as unidades;
-
combinação - deve haver uma seleção nos agrupamentos, nem todas as letras podem
combinar-se com as outras.
Relacionando esses
diversos elementos, as autoras chegam aos níveis da construção da linguagem
escrita, aqui exemplificados a partir de Azenha (1995), em seu livro
“Construtivismo de Piaget a Emilia Ferreiro”.
Nível 1 - Escrita Indiferenciada: uma das principais
características da escrita pertencente a este nível é a baixa diferenciação
existente entre a grafia de uma palavra e outra. Os traços são bastante
semelhantes entre si e, dependendo do tipo de escrita com a qual a criança teve
maior interação, os grafismos podem ser constituídos de traços descontínuos
(cujo modelo é o traçado da letra de imprensa), ou com maior continuidade
(inspirados no traçado da letra cursiva).
Dada a semelhança que
as escritas têm quando comparadas entre si, o que as diferencia é apenas a
intenção do produtor. Interpretações, portanto, só podem ser feitas pelo
próprio autor. Ainda assim, a leitura que a criança faz após a escrita de cada
palavra é muito instável e, algum tempo depois, se o próprio produtor voltar a
fazer novas interpretações, poderão ser atribuídos aos grafismos novos
significados.
De uma forma não
sistemática, uma estratégia utilizada pelas crianças para proceder a alguma
diferenciação entre os grafismos é reproduzir o tamanho do objetivo referido,
fazendo corresponder a ele um traço maior ou menor, na dependência do referente
da palavra a ser escrita.
Algumas crianças usam
uma estratégia que parece demonstrar a dificuldade de interpretar a própria
produção escrita, que objetivamente não distingue um conteúdo de outro. A
necessidade de encontrar apoio que garanta o significado no momento da leitura
as faz parear desenhos e escrita. O desenho é uma clara estratégia de remissão
ao conteúdo registrado.
Os dados constantes
da Psicogênese da Língua Escrita também exemplificam essa conduta, indicando a
existência de alguma indecisão momentânea das crianças para definir ou
classificar os grafismos produzidos (desenho ou escrita). Ferreiro interpreta
essa indecisão como decorrente das dificuldades de compreender a função da escrita,
fato que leva algumas crianças a responder à proposta de escrita com um
desenho, classificado por elas como escrita. Parecem estar indecisas quanto ao
que a escrita representa: registro do significado ou registro de palavras?
Neste nível, a
característica mais importante é a maneira como as crianças procedem à
interpretação: a leitura é global. Elas não fazem análise entre as partes
componentes e o todo, inexistindo, portanto, tentativas de fragmentação do
texto escrito durante o ato de leitura.
Nível 2 - Diferenciação
da Escrita[1]:
a característica principal das escritas categorizadas como pertencentes a este
nível é a tentativa sistemática de criar diferenciações entre os grafismos
produzidos. A necessidade de diferenciar a intenção do produtor é objetivada
pela criação de totalidades gráficas distintas.
A hipótese da
quantidade mínima de caracteres (que deve haver um número mínimo de caracteres)
para compor uma escrita e a necessidade de variá-los continuam como exigências
presentes. Acrescidas da intenção de objetivar as diferenças do significado das
palavras. Quando a disponibilidade de letras conhecidas é pequena, a
confluência dessas exigências acaba por criar a necessidade de gerar
totalidades novas pela alteração da ordem linear das letras. Em outras
palavras, utilizando-se de um mesmo repertório, a ordem das letras deve variar
de uma escrita para outra, de forma a garantir a criação de um conjunto que se
diferencie do outro.
Nível 3 - Hipótese
Silábica: este nível de aquisição é caracterizado pela emergência de um
elemento crucial, ausente nos níveis anteriores: a criança inicia a tentativa
de estabelecer relações entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto
gráfico do registro. A consideração dos aspectos sonoros da linguagem representa
um divisor de águas no processo evolutivo. A estratégia utilizada pela criança
é atribuir a cada letra ou marca escrita o registro de uma sílaba falada, e
isso constitui a hipótese silábica. O saldo qualitativo representado por essa
estratégia leva a criança à superação global entre a forma escrita e a
expressão oral, fazendo com que, pela primeira vez, trabalhe com a hipótese de
que a escrita representa partes sonoras da fala.
O emprego de letras
sem a consideração de seu valor sonoro convencional ou a qualidade da grafia
não é condição para identificação do emprego da hipótese silábica. O fato
crucial que evidencia a sua utilização pela criança é atribuição de um valor
silábico a cada marca produzida como parte de uma totalidade registrada, seja
ela letra, pseudoletra, número, letra com valor sonoro convencional ou não. A
fragmentação do texto escrito para fazer
corresponder um segmento oral a um segmento escrito é o indicador da concepção silábica de escrita.
corresponder um segmento oral a um segmento escrito é o indicador da concepção silábica de escrita.
Nível 4 - Hipótese
Silábico-Alfabética: este nível é caracterizado pela utilização simultânea
das hipóteses silábica e alfabética, ou mesmo o momento de passagem de uma
hipótese para outra. As alterações vão sendo feitas pontualmente, em alguns
segmentos da escrita, mas não em outros, dentro da mesma palavra. É um momento
de transição, em que a criança, sem abandonar a hipótese anterior, ensaia em
alguns segmentos a análise da escrita em termos dos fonemas (escrita
alfabética).
Nível 5 - Hipótese
Alfabética: Este nível, vencidos
todos os obstáculos conceituais para a compreensão da escrita, mostra a
correspondência entre cada um dos caracteres da escrita e os valores sonoros
menores que a sílaba. A criança, nesse nível, realiza sistematicamente uma
análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever. Atingida esta fase de
aquisição da escrita, pode-se até afirmar que uma criança está alfabetizada,
embora não signifique a superação de todos os problemas.
Há o alcance da
legibilidade da escrita produzida, já que esta pode ser mais facilmente compreendida
pelos adultos, no entanto, um amplo conteúdo ainda está para ser dominado: as
regras normativas de ortografia.
Na verdade, as
hipóteses de Ferreiro e Teberosky sobre a compreensão do funcionamento da
aquisição do sistema de escrita pela criança abordam a alfabetização. No
entanto, as autoras (1985, p. 156) prevêem como objetivo da alfabetização a
introdução da língua em toda a sua complexidade e não unicamente como
introdução do código com correspondências grafofônicas.
Para essas autoras, o
que caracteriza a complexidade da escrita é o seu desenvolvimento, iniciado
antes mesmo de a criança aprender a ler e a escrever de forma convencional, e a
continuidade do processo, que se estende mesmo após ter compreendido a
representação da escrita. Crianças ainda não alfabetizadas buscam regularidades
e padrões no sistema de escrita de forma que aquilo que escrevem possa ser
aceito como uma palavra e possa ser lido por outra pessoa (FERREIRO; TEBEROSKY,
1985). Dentro dessas regularidades, as crianças iniciam um processo de reflexão
metalingüística sobre a representação das marcas gráficas e dos sons emitidos.
Ferreiro e Teberosky
(1985, p. 181), nos estudos que fizeram sobre a natureza do sistema de
representação da escrita, no caso de um sistema alfabético, como o português,
mostram a extrema importância de a criança desenvolver uma hipótese alfabética
para ser capaz de analisar as palavras em termos de fonemas, que são
representados pelas letras na palavra escrita. Importante enfatizar que essas
descobertas todas não significam o final do processo, pois a criança terá que
aperfeiçoar o aprendizado com objetivo de produzir uma escrita ortográfica
apropriada ao português.
A interação da
criança com um adulto, ou com pessoas mais proficientes de seu grupo, está
expressa na concepção de aprendizagem como um processo de construção de
conhecimento, na teoria de Vygotsky e seus seguidores. Dentro dessa concepção,
o professor da classe de alfabetização vê seu aluno como um sujeito que constrói
ativamente saberes e habilidades. Isto difere profundamente de quadros
transmissivos nos quais os alunos são considerados “receptores”; tábulas rasas, que aprendem por
repetições ou por substituições. Para Vygotsky os sujeitos constroem seus
conhecimentos em contextos historicamente determinados sobre a base de suas
representações e de seus saberes anteriores.
A
aprendizagem, segundo o autor (2001), pressupõe o envolvimento de pequenos
grupos ou pares de indivíduos em uma interação social, em uma prática comunicativa.
A relação Sujeito – Outro – Objeto faz com que o sujeito construa os saberes no
quadro das interações sociais. Essa aprendizagem, por sua vez, será resultante
de internalização, ou seja, certos aspectos da atividade realizadas no plano
externo passam a se realizar no plano interno.
A construção do
conhecimento é, pois, apresentada como um jogo constante de conflitos, de
desestruturações/reestruturações. Para essa construção, o conceito de “Zona de
Desenvolvimento Proximal” (ZDP) é fundamental (VYGOTSKY, 2001, p. 97):
Ela
é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma designar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um
adulto ou em colaboração com companheiro mais capaz.
Vygotsky considera
dois níveis de desenvolvimento. O primeiro, referente a conquistas já
efetivadas, representa o nível de desenvolvimento real ou efetivo, com
conquistas que já estão consolidadas, funções ou capacidades que já foram
aprendidas e dominadas de forma a serem utilizadas sozinhas. O outro, relativo
ao desenvolvimento potencial, diz respeito às capacidades em vias de serem
construídas, também envolvendo aquilo que a criança é capaz de fazer mediante a
ajuda de outra pessoa. O aprendizado é responsável por criar a zona de
desenvolvimento proximal, na medida em que, em interação com outras pessoas, a
criança é capaz de colocar em movimento vários processos de desenvolvimento
que, sem a ajuda externa, seriam impossíveis. Desse modo, o que determina a ZDP
é o nível de desenvolvimento da criança e a forma de ensino aprendizagem
envolvida. A ZDP, da forma como é formulada, prevê apenas situações de sucesso
na aprendizagem.
Vygotsky atribui
enorme importância ao papel da interação no desenvolvimento do ser humano,
pois, segundo ele, é um processo socialmente constituído. Essa é a principal
razão de seu interesse no estudo da infância, “A mente da criança contém todos
os estágios do futuro desenvolvimento intelectual: eles existem já na sua forma
completa, esperando o momento adequado para emergir” (VYGOTSKY, 2001, p. 26).
Para ele, no entanto, a maturação biológica é um fator secundário do
desenvolvimento das formas complexas do indivíduo, pois essas dependem da
interação da criança e sua cultura. O aprendizado de modo geral e o aprendizado
escolar orientam e estimulam processos de crescimento. O desenvolvimento e a
aprendizagem estão inter-relacionados desde o nascimento da criança. Através da
interação com o meio físico e social, essa criança realiza uma série de
aprendizados, que lhe permitem atingir as funções superiores.
Para compreender suas
concepções sobre o desenvolvimento humano como processo sócio-histórico é
central a idéia de mediação: como sujeito do conhecimento, o homem não tem
acesso direto aos objetos, só acesso mediado, através de recortes do real,
operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe. Vygotsky, assim, enfatiza a
construção do conhecimento como uma interação mediada por várias relações. A
corrente sócio-histórica, presente nas obras de Vygotsky, centraliza esse
processo na atividade interativa, envolvendo uma mediação necessária feita pelo
outro - adulto e parceiros de aprendizagem. Essa
aprendizagem efetivamente socializada se dá através de um mecanismo pelo qual
uma atividade externa se torna uma atividade interna (internalização), como já
explicado.
A partir dessa
perspectiva, o professor, o colega mais experiente na escola assume papel
fundamental no intercâmbio, regulando o funcionamento discursivo e interferindo
na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo. Na sala de aula, convivem
crianças da mesma idade com seu professor. Nem sempre esse fato social é
aproveitado pelo ensino, embora seja fácil perceber a riqueza potencial do
intercâmbio entre pares para a aprendizagem.
Outro ponto de vista
importante da teoria vigotskiana é a ênfase à escrita, justificada pela
importância da linguagem escrita para o pensamento. Do ponto de vista
cognitivo, a aprendizagem da língua escrita, ao mesmo tempo em que se está
associada à aprendizagem de um novo objeto de conhecimento, também se apresenta
como uma nova ferramenta para futuras aprendizagens. A língua escrita é para o
aprendiz um meio pelo qual ele irá raciocinar e representar o mundo ao seu
redor. As propriedades desse sistema simbólico vão influenciar os processos
cognitivos da criança, de modo a amplificar os seus limites naturais e seus
modos de operação.
O processo de
alfabetização/letramento, em se tratando de crianças, tem seu ponto de partida
na aquisição da leitura e da escrita.
A alfabetização hoje
é vista como o fator principal do fracasso escolar, cujo índice, principalmente
entre as crianças das camadas populares, evidencia uma fraca eficácia do
sistema escolar. Pesquisas recentes revelam que crianças do ensino fundamental
têm dificuldades para ler e para utilizar a escrita na produção de textos em
seus usos sociais.
O SAEB (Sistema de
Avaliação de Educação Básica) demonstra, em sua pesquisa de 2004, que 59% dos
alunos da 4ª série do Ensino Fundamental apresentaram resultados
insatisfatórios no desenvolvimento da leitura e da escrita, mostrando que um
número expressivo de alunos não aprende a ler nem a escrever na escola. O
afastamento que crianças das classes populares têm da linguagem escrita em
livros, jornais, enfim, material escrito, faz com que essas crianças precisem
de um tempo maior ou de outro tipo de investimento para que entendam como
funciona e para que serve a linguagem escrita.
Considerando-se que o
atual contexto social e profissional requer um cidadão com conhecimento sobre a língua escrita além das “primeiras
letras”, os processos de alfabetização precisam ser devidamente entendidos e
trabalhados. Antes de tudo, o professor precisa refletir sobre o que significa
alfabetizar em uma sociedade letrada, uma vez que, de acordo com Val (2004), é
possível a uma pessoa passar pela escola, aprender a codificar e decodificar a
escrita, ler palavras e textos simples, mas ser incapaz de empregar a linguagem
escrita em situações sociais que requerem habilidades mais complexas de leitura
e produção textual. Essa pessoa pode ser considerada alfabetizada, mas não
letrada, visto que o letramento supõe a participação de sujeitos em ações
sociais contextualizadas que acontecem nas diversas situações de uso real da
leitura e da escrita.
Alfabetização
e letramento são dois processos diferentes, mas indissociáveis (SOARES, 2002).
Essa diferença fica mais clara quando se entende a alfabetização como o
processo de aprendizagem do código da escrita, e o letramento como o
desenvolvimento das práticas sociais de leitura e escrita. São processos
cognitivos diversos que exigem procedimentos metodológicos diferentes.
Entretanto é preciso que o aluno, no processo de alfabetização, domine o
letramento, e adquira o código praticando. Nessa perspectiva, alfabetização é
letramento.
Segundo
Soares (2001) o emprego dos verbos integrar e
articular retoma a afirmação
anterior de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado
atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita,
indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se,
constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita,
em situações de letramento, isto é, no contexto de/e por meio de interação com
material escrito real, e de sua participação em práticas sociais de leitura e
de escrita. Essa interação não pode ser construída de forma artificial, de ao
contrário, ser naturalmente proposta pela escola, e expandida para os limites
do contexto social em que vive a criança.
Uma maneira de
enfrentar os desafios da alfabetização é respeitar o conhecimento prévio que o
aluno traz para a escola. Quando os conhecimentos prévios não são considerados,
as crianças passam a enfrentar maiores dificuldades na aprendizagem. Crianças
que vêm do meio letrado trazem muitos conhecimentos sobre leitura e escrita.
Nesse caso, a junção do que a criança já sabe com a aprendizagem da escola se
completam, proporcionando uma rápida aprendizagem do ler e escrever.
Por outro lado, a
criança que vem das camadas populares traz consigo um outro conceito sobre a
atividade de leitura, uma vez que tem a sua disposição uma quantidade menor de
material escrito, não vê e não participa de atos de leitura, muitas vezes os
pais são analfabetos, e em suas casas não há revistas, livros, jornais ou outro
material para leitura. Cabe à escola mostrar a essa criança o valor social da
escrita, pois não se pode esquecer que, mesmo vindo de uma camada
desfavorecida, a criança vive imersa na cultura letrada, pois só o fato de sair
à rua é suficiente para mostrar a presença constante da escrita por todos os
lados.
Pesquisa realizada
por Franz (2004), em uma escola da periferia de Porto Alegre (RS), investiga
alunos que não conseguiam aprender a ler e a escrever em turmas regulares e
que, em razão disso, integravam uma Turma de Progressão (TP). Diferentemente de
outros planejamentos relacionados à alfabetização, nos quais normalmente se
trabalha com a história da escrita, com o traçado das letras, com o
reconhecimento do som, do nome e da forma das letras, com a categorização
gráfica das letras e com as letras dos nomes dos alunos, este projeto
pedagógico exigia que os alunos sentissem vontade de aprender as letras ou que,
pelo menos, sentissem que eram capazes de aprender. Até aquele momento
considerava-se que, como a maioria dessas crianças já havia freqüentado a
escola, o desejo real de escrever e ler estava consolidado. As atividades
desenvolvidas nas duas primeiras semanas de aula mostraram justamente o
contrário: os alunos não acreditavam na capacidade que tinham para aprender, já
que haviam fracassado em outras vivências escolares. A escrita e a leitura eram
ignoradas, e, quando eram solicitados a realizar trabalhos que envolvessem o
alfabeto, os alunos escondiam-se atrás de desentendimentos e brigas com os
colegas, havendo necessidade de conter fisicamente alguns, com aparente
comprometimento psicológico e/ou neurológico. Além disso, os alunos conviviam
com poucos materiais escritos, a escrita e a leitura não tinham um lugar na sua
vida, pois representavam um fracasso para eles. Houve, então, necessidade de um
trabalho de alfabetização para significar e/ou ressignificar a escrita e a
leitura na vida desse grupo de crianças, ou ainda para conhecer mais de perto o
que as impedia de ir adiante. O primeiro trabalho proposto, com base no
interesse das crianças, foi a escrita dos nomes das partes do corpo humano. Dessa
forma a TP começou a abrir espaço para o estudo das letras, dando início ao seu
processo de alfabetização. Simultaneamente ao trabalho desenvolvido sobre o
conhecimento do corpo, os alunos foram convidados a fazer um passeio dentro da
comunidade para visitar a casa de cada um, com a finalidade de fotografar tudo
o que estivesse escrito no trajeto percorrido. O trabalho em sala de aula, com
os escritos retirados da própria comunidade, através de fotografias solicitadas
pelos próprios alunos provocou interesse em relação à escrita. Todo o trabalho
centralizou-se no princípio de que motivação da escrita é sua própria razão de
ser; a decifração constitui apenas um aspecto mecânico de seu funcionamento.
Alfabetizar
letrando no processo de aprendizagem inicial da língua escrita,é, sem dúvida o
caminho da superação dos problemas, conforme constatando em levantamentos do
tipo do realizado pelo SAEB e citado anteriormente.
É importante
estabelecer a distinção entre alfabetização e letramento que norteia o presente
estudo: alfabetização – compreendida como aquisição do sistema convencional da
escrita – distingue-se de letramento – entendido como o desenvolvimento de
comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em
práticas sociais. Essa distinção ocorre tanto em relação aos objetos de
conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e lingüísticos de
aprendizagem e também de ensino desses diferentes objetos. Tal fato explica por
que é conveniente a distinção entre os dois processos. Também é necessário
reconhecer que a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto
de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou
seja, em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento. O
letramento, por sua vez, pensado dentro do contexto de escolarização, só pode
desenvolver-se na dependência da/e por meio da aprendizagem do sistema de
escrita. Como bem afirma Soares (2002, p. 3),
Para
a alfabetização e letramento ocorrerem em sala de aula é necessária uma
proposta de um ensino de língua que tenha o objetivo de levar o aluno a
adquirir um “grau de letramento” cada vez mais elevado e desenvolver nele um
conjunto de habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam
fazer o maior e mais eficiente uso possível das capacidades técnicas do ler e
escrever.
Nesse ponto, é
preciso ressaltar que o conceito de letramento, de uma forma ampla, permite
ainda abrigar práticas letradas de indivíduos não alfabetizados. Um indivíduo
pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser letrado, porque
se envolve em práticas sociais de leitura e de escrita.
Como vivemos numa sociedade em que as letras, as palavras estão por toda parte,
as pessoas que convivem com elas obrigam-se a descobrir formas de usá-las, já
que precisam tomar o ônibus, ir a dados lugares, comprar determinados produtos,
manusear dinheiro etc., o que significa que, embora não estejam alfabetizadas
em nível escolarizado, essas pessoas, do “seu jeito”, utilizam à leitura como
prática social. Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou,
mas já folheia livros, finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe
são lidas, está rodeada de material escrito e percebe seu uso e função. Embora
ainda “analfabeta”, já penetrou no mundo do letramento, já é letrada.
O conceito do que é
ser alfabetizado também vem evoluindo, e já incorpora as noções de letramento.
Durante muito tempo, considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrever
o próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à pergunta se sabe ler e
escrever um bilhete simples que define se o individuo é analfabeto ou
alfabetizado. Ou seja, da verificação apenas da habilidade da codificação do
próprio nome, passou-se à verificação da capacidade de usar a leitura e a
escrita para uma prática social. Embora essa prática seja bastante limitada, já
se evidencia a busca de um “estado ou condição de quem sabe ler ou escrever
mais que a verificação da simples presença da habilidade de codificar em língua
escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avaliação do nível de
letramento, e não apenas a avaliação da presença ou ausência da tecnologia do
ler e escrever” (SOARES, 2001, p. 37). Do ponto de vista individual, o aprender
a ler e a escrever engloba alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se
alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas
práticas sociais de leitura e de escrita. Essa nova prática tem conseqüências
pois altera o estado ou a condição do indivíduo em aspectos sociais, psíquicos,
culturais, políticos, cognitivos, lingüísticos e até mesmo econômicos.
A alfabetização
implica a aquisição de uma tecnologia: codificar em língua escrita (escrever) e
decodificar a língua escrita (ler). Não basta, porém ao aluno adquirir essa
tecnologia: ele precisa usá-la em práticas sociais de leitura e escrita, em
práticas de letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes e
indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto de/e por meio de
práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de
letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da/e por
meio da aprendizagem das relações fonema-grafema. Portanto, não se trata de a
escola escolher entre dois processos: a alfabetização ou o letramento. Não há
opção entre isto ou aquilo. No contexto escolar, os dois processos, como
ressaltam Soares (2001, 2002), Matêncio (1994), Terzi (2002), Kleiman (1998),
não podem estar separados, têm que acontecer ao mesmo tempo. Logo, só existe
uma escolha: alfabetização e letramento.
Dessa forma, a escola
precisa ir além daquela visão conservadora de que a alfabetização está restrita
às habilidades de leitura e escrita; precisa ter como meta conciliar as duas
aprendizagens da língua escrita: a do letramento, por meio do convívio da
criança com a cultura escrita, da sua interação com diferentes tipos e gêneros
textuais, da sua participação em atos reais de leitura e escrita; e a da
alfabetização, por meio da identificação das relações fonema-grafema, do
conhecimento do sistema de escrita, do desenvolvimento de habilidades de
codificação e decodificação. Nesse sentido, a aquisição da escrita acaba
constituindo um processo de alfabetização “sem limites ou datas marcadas”, como
afirma Guimarães (2006, p. 60).
Nesse cenário de
aproximação entre alfabetização e letramento, é importante relembrar alguns
pontos fundamentais da teoria vygotskiana que podem ajudar a concretizar essa
relação na escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões em
torno da alfabetização e letramento não são discussões passageiras, porque são
importantes temáticas a serem debatidas e articuladas no trabalho que docentes
realizam em sala de aula.
É de suma importância
para o professor alfabetizador ter conhecimento das fases da aquisição da
escrita para durante o processo de alfabetização compreender as construções
feitas pelos alfabetizandos.Ter um olhar
sobre a aquisição da escrita de “construção”, não apenas como erros e falta
de compreensão.
Também dentro da
teoria Vygotskiana encontramos a importância do “outro” dentro da compreensão e
aquisição da escrita, motivo pelo qual se faz presente dentro deste artigo.
Após conhecermos
estes importantes conceitos teóricos, vemos também a grande importância de
alfabetizar e letrar no mesmo instante. Alfabetização e letramento são
processos independentes, um não depende do outro, mas, alfabetizar e letrar é o
grande desafio hoje para o professor alfabetizador. O modo como o professor
conduz o seu trabalho é crucial para que a criança construa o conhecimento
sobre o objeto escrito e adquira certas habilidades que lhe permitirão o uso
efetivo do ler e do escrever em diferentes situações sociais.
Há uma necessidade muito grande que haja um diálogo
constante entre professores, pesquisadores e formadores de professores, na
busca de alternativas pedagógicas para a escola formar realmente leitores e
produtores de textos competentes.codificar e decodificar o código escrito é
apenas alfabetizar, formar sujeitos que exerçam a escrita nas diversas situações
sociais que lhe são impostas pela sociedade requer do professor que assuma
certas posturas diferenciadas,como a de realizar o trabalho de aquisição da
tecnologia da escrita, somando à interação com diferentes textos escritos
criando situações de aprendizagem que se aproximem do uso real da escrita fora
da escola.que a vida dentro da sala de aula seja uma continuidade daquilo que é
vivido fora dela.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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